Quando Virginia Wool escreveu Um teto todo seu, um ensaio baseado em palestras ministradas pela autora, ela fala, e vou resumir muito aqui, da importância de as mulheres terem um espaço onde possam se dedicar a sua arte. Espaço não só físico, como um espaço com porta que possa ser fechada para que a mulher não seja interrompida o tempo todo, mas eu penso no espaço mental-emocional que permita que a mulher se dedique ao que quer que seja.
Porque talvez Virginia não tivesse a carga mental que nós temos hoje. Sabemos que ela vivia com considerável conforto, e como senhora da casa precisava se ocupar de manter o funcionamento de tudo, o que talvez consistisse em fazer a lista de compras e sugerir um cardápio às empregadas.
De novo, estou simplificando muito aqui a vida da autora e o que ela apresenta no livro, mas sinceramente, quando penso nessa obra me vem um pouco do discurso “todo mundo tem vinte e quatro horas no dia”.
Sei que a maioria das mulheres já está cansada de ouvir falar de carga mental, mas enquanto isso não mudar, a gente vai continuar falando.
Na minha realidade já cheia de “privilégios”, que a gente sabe que deveriam ser direitos, eu tenho um teto todo meu (que na verdade ainda é do bando e continuará sendo por mais 30 anos), não me falta nada das necessidades básicas, eu escolho o que comer, posso até comer em restaurantes. Eu e meu filho escolhemos o que vestir etc.
Trabalho de casa, não preciso mais me amassar no transporte público lotado, nem me preocupar se vou conseguir sequer voltar pra casa num dia de chuva, coisa que foi minha realidade por muitos anos.
Quando me sento para trabalhar, primeiro olho minha agenda, confiro se é dia de pagar contas. Então penso se preciso pedir entrega do supermercado, se acabaram os produtos de limpeza, se preciso colocar feijão de molho.
Enquanto escrevo este texto, parei três vezes porque me lembrei de pendências que tinha que resolver.
Tenho três listas de tarefas separadas: trabalhos “para os outros”, trabalhos “para mim”, pendências gerais.
No trabalho para os outros estão meus clientes, editoras, projetos coletivos, nem sempre remunerados.
Nos meus trabalhos, entram a newsletter, postagens para o blog e o Instagram, tarefas de cursos, contos/poemas que comecei a escrever e não consegui terminar ou, raros, os que precisam de revisão para serem finalizados, traduções para o blog etc.
Pendências gerais são: marcar médicos, exames, assistência técnica, pegar os remédios na farmácia, buscar os óculos do meu filho…
E alguém poderia ousar dizer que meu caso é assim porque sou mãe solo e a única adulta da casa, mas minhas amigas casadas, salvo raras exceções, sabem que não é assim.
Eleve tudo a alguma potência quando temos filhos. Quando trabalhamos fora de casa. Sem rede de apoio. Com problemas de saúde. Quando somos cuidadoras de algum parente mais velho ou com necessidades especiais.
Eu não tenho um teto meu.
Neste exato instante, um olho está no relógio porque logo é hora de começar a preparar o almoço, mas antes disso preciso levar o lixo para fora, e antes disso limpar as caixas de areia dos gatos. Meu filho está na sala, onde também fica minha escrivaninha, bem como a mesa de jantar, porque não, eu não tenho um escritório fechado onde posso me isolar do mundo, porque eu não posso me isolar do mundo, neste caso porque eu quero, também, participar da vida do meu filho. Ele agora assiste à TV e às vezes comenta algo comigo.
Quando Mrs. Dalloway resolve ir ela mesma comprar as flores, já sabemos que é algo excepcional, que geralmente seria feito por uma das muitas empregadas que ela tem a sua disposição.
Aí penso em Carolina de Jesus, que ainda assim escrevia, quando dava, onde dava, em pedaços de papel amassados e até sujos, porque precisava escrever para se sentir viva? gente?. Assim como escrevem as mães solo entre um cochilo e outro do bebê, as empregadas a quem mandam buscar as flores e fazer o mercado, as professoras sobrecarregadas. Toda sorte de mulher ainda consegue, mesmo sem um teto todo nosso, continuar escrevendo, criando, pintando, bordando, tecendo. Porque nos recusamos a sermos somente moídas e termos nossa voz apagada. Ainda que nosso trabalho intelectual e artístico nunca seja publicado ou exposto, ele existe e continuará existindo.
É isso. Escrevemos quando dá, onde dá, porque precisamos disso pra viver. E não, não temos um teto todo nosso, porque não podemos ou como você disse, não queremos. Eu retomei minha escrita agora e estou me adaptando a escrever no telefone, no meu amado metrô! Me sentindo bem de ter me libertado de um modo de escrita que não me pertence, sentada, estática, porque não é quem eu sou. Amei Taty!
Que cartinha mais linda Taty! do alto do meu privilegio, que, como você bem disso, deveria na verdade ser direito de todas, eu escrevo, leio, faço as coisas no tempo que dá, na correria da vida, porque né, não nascemos herdeiras