“Flora Hen”, como diz a capa, é “uma fábula de amor e esperança”, e não consigo pensar em melhor sinopse do livro, que conheci graças à Curadoria de literatura feminista de Suzana Veiga. Escrito pela sul-coreana Hwang Sun-mi, que começou a escrever aos 32 anos porque queria alfabetizar seus filhos com literatura, “Flora Hen” se tornou sua obra mais vendida.
Flora é uma galinha poedeira que sonha com o mundo que vê pela frestinha da porta da granja e almeja poder, um dia, chocar um ovo até que seu bebê quebre a casca e ela possa acolhê-lo sob suas asas. Quando ela já não mais bota ovos, os granjeiros a colocam em uma vala para morrer, mas ela escapa, cheia de vontade de conhecer um mundo que lhe foi negado. Mas o que ela encontra é hostilidade: uma doninha faminta que a vê como jantar, e os demais animais, criados no celeiro, que não a querem ali.
Como todo bom livro, “Flora Hen” possibilita muitas camadas de interpretação. Num primeiro momento, pensei nos criadouros de galinhas poedeiras e de corte, no cruel mercado da carne, no sofrimento absurdo que é a única coisa que esses animais conhecem. Depois, encontrei um toque de etarismo: onde já se viu uma galinha velha dessas que nem consegue mais botar ovos querer viver!
(Como odeio spoilers, deixo avisado e bem claro que agora haverá alguns pequeninos spoilers da história).
Um dia, Flora encontra um ovo e decide chocá-lo. É sua chance de finalmente realizar seu sonho. Ela choca e choca e choca até que nasce seu bebê. O filhote vai crescendo, e ela o ama e tenta protegê-lo da faminta Doninha a todo custo. Um dia, um bando de patos diz a ela que Topo Verde, seu bebê, não é um pintinho, como ela acredita, mas sim um patinho, e tenta convencê-la a deixar que ele vá se unir a seus iguais. Passado algum tempo, um dia Topo Verde vê um bando de patos-reais voando e seu coração dispara, algo ancestral ressoando em seu peito.
“Ela abriu as asas e abraçou seu grande bebê bem apertado. Abraçou-o por um longo tempo. Sentiu a textura sedosa das penas e o cheiro dele e afagou as costas de Topo Verde. Esta talvez fosse a última vez. Momentos preciosos não duram para sempre. Flora queria guardar tudo isso na lembrança. Pois lembranças seriam em breve tudo o que ela teria.”
Eu não sei como aconteceu, mas eu agora sou mãe de um adolescente. William fez trezes anos, e toda vez que ele me abraça, pede colo ou quer dormir comigo porque o sono não vem, me pergunto quando vai ser a última vez que ele vai precisar de mim. Em algum momento ele vai abrir as asas, perceber que é um pato-real e vai querer alçar voo, e eu ficarei com as lembranças.
Clichês são bregas talvez porque são verdadeiros, e é real que o tempo voa; ontem mesmo eu tinha um bebê rechonchudo tentando chamar minha atenção a todo instante e agora no lugar dele está um adolescente longo e fino que ainda não perdeu todos os traços infantis, nem físicos, nem emocionais.
Entrei numa pira de questionar se estou fazendo o suficiente. Deveria ter brincado mais? Passeado mais? Conversado mais? Dá tempo ainda de conversar sobre tudo o que acho importante? Ele vai me ouvir? É o tipo de prova para a qual não adianta estudar, porque boa parte do resultado vai depender também dessa pessoa em quem ele está se transformando.
O final do livro de Flora ainda traz mais uma camada: a da empatia que só mães têm com outras mães. Às vezes, a aldeia para criar uma criança é diferente do que a gente sonhou.
Ilustrado por Mundoca, o livro saiu no Brasil com tradução (da versão em inglês) de Lídia Luther pela editora Geração.
Quebrei a cabeça pensando em séries afins com o tema e, além da minha queridinha “Gilmore Girls”, trago mais duas:
- “Ginny e Georgia”: o foco da série não é exatamente a relação com adolescentes, mas tem todo o plot de festas, transas, drogas, fugas, mentirinhas, além de tratar de questões de famílias interraciais e de poder econômico.
- “Sangue e água” é uma série sulafricana, falada em inglês, zulu e xhosa, cujo plot envolve roubo de crianças, política e os dramas tipicamente adolescentes, como paixão, traição, insegurança, popularidade.
As duas estão na Netflix.
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Mais um microconto para o desafio Literoutubro, do pessoal da Toranja:
da varanda observo o vai e vem de abelhas na touceira de lavanda, que floriu apesar do frio que perdura neste atípico outubro. coberta com a manta que tricotei numa crise de ansiedade que durou meses e eu precisava de qualquer coisa para ocupar as mãos, deixei o livro de lado e me rendi ao leve balançar da rede, que a brisa forte ainda com cara de inverno causava. meu coração sempre se alegra ao ver abelhas. “nem tudo está perdido, quem sabe ainda tenhamos tempo” penso ao vê-las se banhando no pólen. mas o vento sopra mais forte e frio e volta o medo de que não tenhamos safra este verão, com a estiagem e tudo o mais. teve um ano que não teve feijão, e nem estava tão doido quanto este. suspiro. o aroma das lavandas invade meus sentidos, desperta memórias de uma vida onde as lavandas não eram gaúchas, mas francesas. naquele ano fez calor demais e eu tinha um namorado marseillais. meu celular toca, não atendo, volto a focar nas abelhas na touceira de lavanda.
Ah, e já conferiu o reels com a visita a uma das livrarias de que falei na primeira cartinha? Bora lá!
Nossa mulher, estou no chão, que carta mais linda e emocionante. Tenho pensado muito nessa relação de maternidade, relação entre filhos e mães e como é complexa, difícil e linda ao mesmo tempo né. Penso que deve ser um processo bem desafiante esse de ver os filhos crescerem, quando mudei para a capital, aos 17 anos, a minha mãe (e a gente sempre foi muuuito grudada), chorou quase um mês inteiro, tadinha. Gostei muito das indicações <3
Amei as indicações também, as duas GG são meu xodó, a outra já botei na lista aqui, vou falar com a Lê pra vermos juntas. E, Taty, que conto gostoso de ler. Ele tem texturas, tem cheiro, tem som, tem esperança, mas não muita. Tem suspiro, amiga. Como você escreve bem. Obrigada