Chegou o livro novo da Annie Ernaux aqui em casa, que eu havia comprado na pré-venda (e como tudo que compro na pré-venda, esqueço que comprei e fico surpresa quando chega!), e como sou pirada nessa mulher, peguei pra ler de cara. Em Memória de menina, Ernaux revisita um acontecimento ocorrido aos exatos 18 anos de idade. Vou falar do livro sem indicar spoiler, porque acredito que o que importa nas obras da autora são o modo como ela conta tudo, as associações socioculturais e o retrato da época em que viveu, fica combinado assim, ok?
“Não é a ele que ela se submete, é a uma lei indiscutível, universal, a lei de uma selvageria masculina à qual, mais dia menos dia, ela teria de se submeter. Essa lei é brutal e indecente, e é assim que as coisas são.”
Então, quando fez 18 anos, Annie D., como ela se chama no livro, foi trabalhar como monitora numa colônia de férias. Era sua primeira vez longe de casa, dos olhos atentos e controladores de sua mãe, também a primeira vez em que ela não seria a aluna exemplar, primeira da turma, mas apenas uma adolescente comum.
E Annie D., como toda moça dessa idade (acho seguro usar “toda”), estava interessadíssima em sexo: como seria? com quem seria? E é impossível ler esse livro dela e não pensar em como foi pra gente. Eu já me enxerguei em outras obras da Ernaux, como A Vergonha e O Lugar, pois eu também procurei o trabalho intelectual para sair de um lugar, mas Memória de menina conversa com todas nós. Eu lia e pensava em como foi com meu primeiro namorico, com quem, assim como ela, nunca passei dos beijinhos. No segundo namorado, lá pelos 18 anos, com quem fiquei por cerca de um ano, mas nunca passamos de umas mãos mais ousadas. Como ela, eu tinha curiosidade e também medo; medo de engravidar, de doença, de ser julgada pelas pessoas. E como ela, só fui “perder a virgindade” anos mais tarde.
“Não consigo encontrar na minha memória nenhum sentimento, muito menos um pensamento. A menina na cama assiste ao que está acontecendo com ela e que uma hora antes ela jamais imaginou que viveria, e isso é tudo.”
Ela não teve a sorte(?) que eu tive, talvez pela época, talvez pelo contexto, de encontrar homens bacanas, então suas experiências diferem muito de como foram as minhas, mas isso vou deixar para quem for ler a obra. Mas esse livro me levou numa viagem pelos primeiros anos da minha juventude, e reviver tudo aquilo junto de Ernaux foi interessante, e bonito, e também dolorido pensar que dela, em 1958, para mim, em 1995, tanto tinha mudado, porém outro tanto continuava igual. Ainda bem que, pelo que observo das amizades do meu filho, parece que segue mudando pra melhor.
E em seguida a esse livro da Ernaux, peguei para ler outro que comprei em pré-venda e que estava ansiosíssima pra ler: Território da luz, de Yuko Tsushima, um romance publicado em 1979 e ganhador do prêmio Noma. Embora seja uma ficção, o romance é inspirado na vida da autora, uma mulher divorciada e que criou sozinha sua filha, isso no Japão da década de 1970. Logo na orelha, há uma referência a uma conversa entre as duas autoras (conversa essa que talvez eu traduza e poste no meu blog):
Então encontrei com uma outra versão de mim nesse livro, a versão de 2010-2011, recém-separada, com um filho pequeno, vivendo em outro país, tendo que decidir o que fazer da vida agora que sua realidade ruiu. A narradora em primeira pessoa se expõe para nós, com suas inseguranças, inadequações, a dificuldade e o terror de ser mãe solo. As culpas.
De novo, os tempos são outros, mas algumas das dificuldades são idênticas, a pressão na mãe, o estigma da mãe solo, a dificuldade de conciliar trabalho e maternidade, a falta de uma rede de apoio de verdade.
“Muito conveniente esse arranjo, hein? Qualquer pessoa com filhos adoraria viver assim! Eu não pensaria duas vezes se soubesse que aceitariam esse esquema e receberiam minhas visitas com um sorriso no rosto. Só que as coisas não são assim.”
Passei a semana imersa nesses mergulhos, revendo partes de mim com quem eu não conversava há tempos, dialogando com essas autoras que tiveram a coragem de mostrar a realidade feminina em suas épocas. E isso alimentou minha vontade de escrever, que andou apagada entre o corre da vida e as dificuldades que este ano me trouxe. Quem sabe o que vem por aí.
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Memória de menina, Annie Ernaux, tradução de Mariana Delfini, ed. Fósforo.
Território da luz, Yuko Tsushima, tradução de Rita Kohl, ed. Alfaguara.
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Gosto demais demais da Ernaux, seus livros me tocam profundamente... Tem uma conversa íntima do seu jeito de escrever que me admira porque, ao mesmo tempo, suas palavras são diretas e sem rodeios. Simplesmente admirável.
Por qual livro dela você recomenda começar a leitura? (Nunca li nada dela)