Expatriar é se distanciar de nossas raízes e, ao mesmo tempo, senti-las buscando a terra conhecida.
Eu morei na Irlanda por 10 anos (e nos EUA por seis meses depois disso). Sempre tive vontade de viajar e conhecer o mundo e de morar fora por um tempo. Como acho que todos sabem, eu trabalho com tradução na área de tecnologia desde que consegui um estágio no 3º ano da graduação, e coincidiu que o começo dos anos 2000 foi o florescimento do Tigre Celta, apelido que Irlanda ganhou depois de o governo fazer concessões para levar as grandes empresas de tecnologia para lá, com um grande boom de vagas de emprego para estrangeiros.
Eu já conhecia autores irlandeses consagrados, como Joyce e Beckett, mas o paisinho nunca tinha me atraído. Até que, na pós-graduação, me deparei com o livro Angela’s Ashes, uma obra triste e pesada sobre um garoto nascido nos EUA de pais irlandeses, que retornam para o país em situação de miséria. É um livro muito bem escrito e gostoso de ler, apesar da história devastadora. (Tem filme também, horrendo e que deixa metade do livro de fora.) Foi essa obra tristíssima que me deixou com vontade de conhecer a pequena ilha.
Com bastante planejamento, fiz um intercâmbio de um mês em Dublin, em janeiro, no inverno úmido e frio, e me apaixonei por tudo ali. Comecei a procurar emprego por lá e, menos de dois anos depois, eu emigrava para um contrato de seis meses, que se tornaram dez anos. Mas eu não quero, hoje, falar do meu trabalho, dos casamentos, do filho que tive ali, mas da sensação de pertencimento.
Nos dez anos que morei fora daqui, cada visita ao Brasil era um novo estranhamento; tudo parecia fora do lugar. Ao mesmo tempo, estar com a comunidade brasileira em Dublin era conforto, era lar, mesmo sem ser.
Os primeiros anos vivendo aqui novamente foram difíceis por um conjunto grande e pesado de coisas, mas estar entre “meu povo” não foi uma delas. Estar aqui, com minha família e pessoas que tinham vivido as eras Collor-FHC-Lula, que tinham lido Grande sertão: Veredas e Dom Casmurro na escola, foi parte fundamental da minha recuperação física e mental. Decidir voltar para casa foi cuidar de feridas que eu não sabia que ainda estavam abertas. E embora hoje eu não me veja morando em nenhum outro lugar, quero que meu filho um dia expatrie e tenha essa vivência confusa e transformadora.
Outro dia assisti (por meios de democratização do audiovisual, se é que me entendes) ao filme “Past Lives”, obra de estreia de Celine Song (diretora e roteirista), que teoricamente virá para os cinemas aqui em fevereiro do ano próximo. A protagonista, Nora, emigrou da Coreia com os pais aos 12 anos, deixando Haesung, seu melhor amigo/primeiro amor para trás. Vinte e quatro anos depois, eles se reencontram:

Logo depois de ver o filme, peguei para ler O livro branco, de Han Kang. Nesta obra bastante pessoal, a autora conta de quando foi viver por algum tempo na Polônia. O livro é composto por textos curtos com gosto de miniensaios, em que ela tenta ressignificar a morte de sua irmã mais velha, que faleceu logo após nascer prematura. Esse acontecimento marca seus pais e toda a sua existência, mas é só quando se afasta do que é costumeiro que ela consegue processar tudo isso.
Em um dos textos, diz:
“Todas as memórias do que passei na vida estão isoladas e seladas junto à minha língua materna, de forma inseparável.”
No filme, o marido de Nora diz a ela:
Não importa quantos idiomas vamos aprender a falar, em que país vamos viver, qual será nossa língua de sobrevivência: a raiz é uma só e não muda. No geral, contar, xingar, amar e sonhar fazemos nessa língua que é, ao mesmo tempo, conforto, afeto e trauma.
Emigrar é buscar algo. Às vezes é buscar fora o que não encontramos dentro. Às vezes nem sabemos o que buscamos. Às vezes não é escolha, mas necessidade, imposição, fuga, sobrevivência.
Alguns de nós voltamos para a terra natal, outros não têm essa opção, ou fazem outra escolha. Em comum, temos embrenhada em nosso DNA a palavra saudade.
“Quando ando pelas ruas, as pessoas que passam por mim conversando e as placas com palavras escritas são quase incompreensíveis. Andando entre os pedestres como uma sólida ilha em movimento, às vezes sinto que meu corpo é uma prisão.”
“Past Lives” tem roteiro e direção de Celine Song e deve estrear aqui ano que vem.
“O livro branco”, de Han Kang, saiu no Brasil pela ed. Todavia com tradução de Natália T.M. Okabayashi.
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Mais um microconto para o desafio Literoutubro, do pessoal da Toranja:
“deixei tuas coisas na portaria”, era só isso a mensagem. nem uma palavra a mais. eu estava saindo da aula quando li, pensei nisso o caminho inteiro, no ônibus, até minha parada. passei no mercadinho pra comprar algo rápido pro jantar.
cogitei não pegar as coisas na portaria e, se o Seu Beto me ligasse falando “tem umas coisas aqui pra senhora”, me fazer de doida: “pra mim? deve ser engano, não tem nada pra mim aí.” mas Seu Beto teria que se desfazer das coisas, possivelmente abriria a caixa, presumindo que seja uma caixa, e sabe deus o que tem lá dentro, que coisas ele deixou aqui na portaria?
— Boa noite, Seu Beto. Tem algo pra mim aí?
— Boa noite, tem sim senhora.
ele me entrega uma sacola minúscula, dessas que dão pra gente na farmácia quando compramos só uma cartelinha de dipirona, uma sacolinha de um tamanho inútil, que não dá nem pra reusar no lixinho, apenas um desperdício de plástico. olho pra ele com cara de “é só isso?” e ele retorna meu olhar e dá de ombros e me deseja boa noite antes de fechar a porta da sua salinha.
não acho coragem pra abrir a sacolinha. faço meu jantar e como assistindo TV.
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Muito bom! A língua com certeza é um fator que impacta, mas eu senti esse deslocamento também morando em Portugal por um tempo. Muito bonito como você traduz essa sensação.
Como sempre, coisa mais linda Taty, gosto tanto dessa sua escrita que sai lá do fundo do coração <3 eu nunca morei em outro país, porém me mudei do interior para a capital e há tbm sempre esse estranhamento, essa diferença de vivências entre o que se vive nos rincões e nas grandes cidades, não é a mesma coisa, mas é parecido essa sensação de precisar sair da bolha para olhar ela de cima, se é que me entende <3