O ano era, talvez, 2006. Pode ser que tenha sido 2007. Por meses a fio, todas as noites de sexta e sábado eu aplicava a maquiagem de palco, preparava a malinha com as roupas de dança e ia até o restaurante libanês que ficava no Dublin Weston Airport, um aeroporto particular que à noite parecia muito coisa de filme, e eu minha amiga e parceira de dança achávamos que os jatinhos que pousavam ali só podiam estar metido com drogas, morena.
Simon, o dono do lugar, pagava bem, não fazia exigências e ainda nos dava janta. Alguns clientes estavam sempre por ali e já animavam a interagir um pouco com a gente enquanto dançávamos por entre as mesas, outros se espantavam e até faziam cara feia. Não sei por que, mas muitos casais frequentavam o lugar, e muitas mulheres olhavam feio pra gente, então era nessas mesas que eu voltava repetidamente, sorrindo largo, sempre pra mulher, só pra ela, como se o homem não estivesse ali. Algumas entendiam a mensagem e relaxavam, e uma vez uma delas até ofereceu uma gorjeta pra gente.
Não tenho fotos desse trabalho. Na época acho que celular mal tinha câmera. Simon tinha tirado algumas fotos e colocado no site, mas o restaurante no aeroporto agora é outro. Pra ser sincera, eu nem lembro o nome do lugar, vocês já sabem como minha memória funciona. Não sei porque tenho lembrado dessa época. Talvez porque agora eu esteja fazendo a mesma coisa, não com a dança, mas com essa mudança de nicho de carreira, e acabo fazendo o equivalente a aplicar a maquiagem e sorrir para estranhos mesmo estando exausta, ansiosa, preocupada. Tem havido muito ensaio, muito rascunho de coreografia, muito vencer a timidez e oferecer meus serviços por aí. Vinte anos depois, vejo que em muitos aspectos ainda sou a mesma.
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Acho que muitas de vocês já conhecem o conto Aqueles que se afastam de Omelas, da Ursula LeGuin, e se não conhecem podem ler aqui na biblioteca anarquista. Por conta das coisas que temos visto diariamente nas notícias, me peguei pensando nesse conto, e na fanfic premiada dele, muito mais pesada e sombria, escrita por Isabel J. Kim e acredito que nunca publicada traduzida por aqui. (Não me peçam pra traduzir porque não tenho cacife pra pagar direito de copyright pra uma história premiada.)
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Estou assistindo um k-drama chamado Uma Seul Desconhecida. O último episódio sai hoje, então recomendo a série sem ter visto o final, mas acho difícil que eu me desaponte. O audiovisual coreano conseguem capturar dores simples e cotidianas de uma forma tão linda, tão poética, que é impossível não se emocionar, e nesta série vemos a cura geracional e a aceitação de não precisarmos ser perfeitos para sermos dignos de amor — parece simples, mas é uma luta diária para muitos de nós. Assistam acompanhadas de um pacotinho de lenços.
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Também vi um filme coreano que estava no meu radar há muito tempo, mas eu nunca chegava nele. Perigosa Obsessão é uma história de amor que se passa na época da guerra do Vietnã. O filme é visualmente belíssimo (ouso dizer, sem ir atrás de base alguma, que tem referências claras em Wong Kar-wai) e a história é daquelas de rasgar o peito.
Curiosamente, vi esse filme logo depois de ver Pura Paixão, filme inspirado no livro Paixão Simples, de Annie Ernaux, livro que ainda me assombra desde que o li há mais de dois anos.
Tirem as crianças da sala antes de assistirem qualquer um dos dois.
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Foi um mês de pouca leitura para mim, e amanhã sai lá no Instagram a listinha do que li neste junho gelado. Li menos porque trabalhei muito — entreguei 10 livros este mês, fiz a leitura crítica de um livro de contos e editei duas versões de livros nacionais. Ufa, né.
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Nosso Desclube tem encontro marcado dia 13 de julho, domingo, às 16h, e ainda dá tempo de participar se tornando assinante pago destas cartinhas. O tema do encontro é livros narrados ou contados por mulheres mais velhas.
Deixei esta cartinha aberta a todos este mês para que vocês possam ver como vem a edição paga com recomendações. Espero que gostem.
Lembrem de deixar um coraçãozinho ali, não custa nada e ajuda meu trabalho, e conversa comigo nos comentários.
Engraçado que nessa mesma época eu estava numa carreira totalmente diferente da de hoje. Eu tocava em uma orquestra, trabalhava como arquivista musical e minha vida toda era dedicada à música. Em 2006 eu quebrei o pé, por exaustão óssea pelo uso excessivo de salto alto. Não me lembro o nome das pessoas, dos chefes, dos colegas. Parece uma outra vida, mas que também tem vindo à minha memória pois eu estava numa baita crise profissional e artística, e essa doida espiral da vida, que mais parece um looping de velhas situações, me coloca novamente a vivenciar essa crise que pede mudanças. Ai minha Deusa, estou cansada também.
Tu era dançarina de ATS (FCBD)? Me abraaaaça! Eu fiz por uns anos, parei faz pouco por falta de tempo rsrs. A estética é INCONFUNDÍVEL. Eu não tô crendo que temos mais isso em comum!