Escrevo esta cartinha hoje mesmo, dia 31 de maio. Hoje finalmente consegui lavar as últimas roupas que ainda estavam acumuladas dos dias sem água em casa. Estão penduradas no varal, secando, e eu chorei enquanto as estendia, pensando em quem ainda não pôde voltar para casa, não poderá tão cedo, não terá para onde voltar. Ou vai voltar para paredes e chão enlameados e todo o resto perdido.
Hoje também foi o dia que consegui tirar o atraso absurdo de alguns trabalhos e projetos (agora estão todos dentro do atraso normal da vida de uma pessoa que além de Barbie profissões ainda é mãe solo). Me pego pensando em quem ainda não pôde voltar ao trabalho, nas fábricas e empresas destruídas pelas águas imundas, resultado do descaso das administrações públicas e do colapso climático do planeta.
Não tem como falar de outra coisa, ainda.
Sim, nesse um mês desde que nossa vida mudou, eu li muito, vi muita TV, trabalhei, fiz refeições com meu filho, encontrei amigas, corri atrás de burocracias. “Vida normal” que não é normal, porque estou cercada de destruição, de pessoas desabrigadas, desempregadas, falidas, adoecidas, em luto.
As imagens e os vídeos da cidade são cenário de guerra, não tem como colocar de outro jeito. Destroços de móveis, álbuns de fotos, livros, roupas, misturados a esgoto, lama, dejetos. Pilhas de livros destruídos nos estoques de editoras e livrarias. Alimentos perdidos dentro de freezers e geladeiras, nas casas e nos comércios atingidos.
Pessoas que foram afetadas em setembro, em novembro e agora de novo. Quantas vezes é possível recomeçar?
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Enquanto as escolas municipais seguiram fechadas, as particulares, por pressão dos pais em cima do sindicato, retomaram as atividades, afinal o que importa é o calendário letivo, as provas, as notas, o ENEM. A solidariedade seletiva gosta de tirar foto das pilhas de doações sendo levadas para cá e para lá, é isso.
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Fico com uma sensação de urgência, de que preciso viver e fazer tudo o tempo todo porque tudo pode ir embora em um dia, em uma semana. A sensação de como somos efêmeros me acerta em cheio. Ao mesmo tempo, me pego perguntando “de que importa?” para praticamente tudo.
De que importa resenhar livro? De que importa escrever um pequeno ensaio? Contos?
Mas importa, porque seguimos vivos, agentes, e precisamos nos lembrar disso.
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Inspirado no “Diário da pandemia”, lançaram o “Diário da enchente”. São relatos em primeira pessoa do horror vivido aqui. Porque é fundamental registrar.
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Por hoje, é isso. Continuem ajudando. Em junho, eu volto com outros temas.
Recomeçar é preciso mas, de longe, me parece uma tarefa hercúlea.
Do que importa tem sido a minha pergunta no último mês, não pelo mesmo luto... Mas qdo desgraças nos atingem, imagino ser comum repensar tudo. Sigamos na tentativa de continuar. Um beijo